O riso ainda lateja na memória do agora, a noite começara com
apostas e cervejas, abraços e piadas, subiram a serra sentindo um pequeno
aperto no medo e uma bolha de protecção nas vozes dos amigos. Iam tentar
encontrar pirilampos em Outubro e contar histórias de terror ao miradouro, mas
rapidamente o passado duma infância citadina regressou, e o encanto de se
esconderem numa
serra imensa ganhou lugar na noite. Correste com um sorriso de alegria, álcool
e medo, para trás da árvore mais negra que encontraste, escutavas ainda as
vozes e os risos de quem te acompanhava, mas sons não compreendidos foram-se
ouvindo em vez dos conhecidos, vozes abafadas, restolhares rápidos, uivos…?
Sentes o teu braço arrepiar-se como se alguém o tocasse lenta e
inesperadamente, mas não vês ninguém, o álcool e a alegria largam o teu
sorriso, fica só o medo. Enquanto deixas o teu esconderijo e procuras os teus
amigos, reparas que a bruma se adensou e quase não vês o caminho que momentos
antes pisaste, chamas os seus nomes, primeiro em voz baixa (e se a brincadeira
ainda decorre, serás tu a estragá-la?), e cada vez mais alto e mais alto, nada,
ninguém, nenhuma voz conhecida, nenhum som incompreendido, só vento, folhas,
névoa e noite.
Prendes o pensamento envolto em névoa tentando alcançar uma
resposta, se algo tiver acontecido aos teus companheiros, o melhor será descer
o tortuoso caminho até à Vila, e pedir ajuda, julgas ter visto uma esquadra da
polícia junto à estação. Recordas o momento da vossa chegada, cheios de malas,
sacos e vida, e aprecias a ironia de poucas horas depois a solidão se ouvir tão
nitidamente no eco dos teus passos. Na verdade, sabes que os teus amigos
poderão estar a tentar assustar-te, ou talvez tenham até voltado para o Hostel,
distraídos pela escuridão e nevoeiro, não dando por falta de um só elemento.
Sentes uma picada na testa, outra e outra, olhas ao alto, começa a chover cada
vez com maior ferocidade. A decisão precipita-se como a água, e desces até à Vila.
O caminho parece transformado pelo pânico, curvas onde antes não havia, lama ao
invés de escadas de pedra, troncos caídos, evitas olhar para o bosque que
ladeia o caminho, na certeza de tomar conhecimento de algo que não te deixaria
dormir à noite.
Ao fim do que te pareceram horas, chegas à fonte azul onde te lembras terem
parado antes do início da subida pela Serra, sentas-te num dos bancos de pedra,
não importa que esteja molhado, tu própria estás encharcada e a chuva não dá
indícios de abrandar. Continuas a descer, agora mais confiante, não falta muito
para chegares ao Hostel e tudo não passará de uma história distante para contar
entre copos. Chegas ao centro da Vila, quase não consegues entrever as chaminés
do Palácio, tens o pressentimento de que algo de errado habita o ambiente em
redor, percorres a imagem com o olhar, mas o óbvio continua a fugir-te por
entre as brumas.
Corres na direcção da Hostel, o alívio aquece a tua pele no momento em que
começas a vislumbrar a torre, entras no jardim e bates freneticamente na grande
porta branca. Não há um movimento, um som, uma luz… Na escuridão do jardim, a
tua mente ilumina a razão da estranheza que sentias há pouco, não há qualquer
luz na Vila, a escuridão dominou a noite. Uma sensação de dormência tenta conquistar
o teu corpo, mas uma força que ignoras condu-lo de volta à Vila, e às voltas
que conheceste na tua chegada. Começas a bater aleatoriamente a portas e
janelas que se entrelaçam no teu caminho, pastelarias, cafés, casas, sentes
confusão e desespero, roupas coladas ao corpo e terror, quando ao longe, uma
luz inconstante te chama sem palavras. Percorres esses metros de alento com a
expectativa de um sentido.
As portadas entreabertas de uma janela solitária deixam antever uma sala
vagamente iluminada…
O teu punho encontra três vezes a madeira daquela porta. Um
postigo rasga a madeira materializando um quadrado de luz fraca e instável na
tua frente, a luminosidade não é suficiente para te revelar quem ou o que está
do outro lado, mas poucos segundos depois a porta solta-se com um ruído
demorado, que abraças com apreensão.
Calor, fumo, cheiro
a lenha, velas, incenso e algo mais recebem-te quando atravessas a ombreira que
te separa do desconhecido. Uma sombra escapa-se na periferia da tua
perplexidade, provavelmente pertence àquele que te deixou entrar, mas quando
tentas alcançá-la com o olhar, nada ficou senão a passagem por onde se sumiu.
Olhas à volta
tentando equilibrar-te naquele novo ambiente, a luz ténue que pouco ilumina
nasce de velas espalhadas pela sala. Percebes que se trata de algum tipo de
estabelecimento, a palavra taberna adequa-se ao espaço, mas não há clientes,
pelo menos não naquela sala, e é então que te apercebes de um murmúrio vindo da
passagem, vozes de diferentes tons, sussurrando palavras estranhas aos teus
ouvidos.
Encaminhas-te para
a entrada que te aproxima dos murmúrios e da sombra anfitriã, quando ouves a
porta bater atrás de ti. Terá alguém saído pela porta sem te teres apercebido?
Os murmúrios da sala adjacente parecem agora não mais que remoinhos de vento
entre frestas de uma janela mal fechada… Estarás de novo sozinha?
A coragem de enfrentar de novo a noite vazia há muito te
abandonou, e por isso o próprio medo empurra os teus passos na direcção
desconhecida de uma estranha sala e seus velados sons. Quando atravessas a
passagem em arco que te leva à sala seguinte, as vozes e o vento são sugados
pelo silêncio, os teus olhos percorrem os cantos negros da sala oblíqua,
enquanto a água que
trazes em ti se some
da roupa para um chão de pedra parda. A sala é escura mas quente, a luz que
pouco deixa conhecer solta-se de um lume moribundo perdido numa lareira antiga.
Apesar de débil o fraco fogo convida-te a aceitar o seu quente enlaço, o
cansaço que trazes em ti torna-se dor e frio, e vais-te aproximando das chamas
enquanto anseias pelo conforto das poltronas que as ladeiam. Deixas o corpo
sentar-se, aquecer-se e o pensamento dormir por instantes, entre o calor que te
enche de cor e vida, sentes um frio que se entranha na pele enquanto os cabelos
da tua nuca se erguem, olhas para a poltrona ao teu lado e percebes que não
está vazia. “Bebe!” Não é uma amável sugestão, é uma ordem que acompanha uma
mão enluvada apontando um copo pousado na mesa que ocupa lugar entre as duas
poltronas. Aceitas sem pensar, parece-te que passaram dias sem sorveres
líquidos ou palavras, e aquele estranho dá-te aquilo de que precisas, uma
presença.
Bebes num momento o que te parece ser um vinho licoroso, e no seguinte as
palavras correm sem pedir em direcção a quem julgas te poder ajudar, mas quando
se calam percebes que eram apenas tuas, e que não trazem de volta sequer um
olhar. A paciência escoa-se, a tua voz eleva-se com o teu corpo e as tuas mãos
agarram firmemente o braço de quem te ignora, por baixo de um tecido largo e
poeirento um braço magro e sólido como osso. Uma mão agarra-te firme e
indelicadamente, puxando-te para Ele. A tua voz rende-se a um silêncio
assombrado quando uns olhos escuros te olham tão te perto que te sentes afundar
em escuridão. A
pele alva da sua face é trespassada por veias escuras e cheias, os olhos
totalmente negros, vórtices, abismos sombrios, sem alma ou expressão. “Fica” a
palavra chega-te envolvida em cheiros de terra, chuva, sangue e morte…
Sacodes o assombro junto com uma mão magra e forte no teu
braço, e corres pela passagem que te trouxe a esta sala. Quando chegas perto da
entrada onde deixaste a noite e a chuva, três mulheres, vértices de um estranho
triângulo, olham-te como se te esperassem. Mais uma incoerência monstruosa
nesta noite de susto… Cabelos longos e desgrenhados, vestes negras e esfa
rrapadas,
garras substituem unhas, olhos profundos e chapéus altos e pontiagudos. Das
suas bocas escapa-se um mórbido cântico, e nas tétricas mãos de cada uma jaz
uma matéria distinta… A primeira acende uma vela enquanto o seu cântico se
eleva acima do das demais, a segunda verte água numa bacia e os seus olhos
baços parecem conhecer algo que tu não vês, a terceira olha-te e estende-te
duas mãos pálidas e compridas cheias de terra, que te convidam a entrar no
círculo.
Tentas alcançar a porta mas estranhas criaturas aladas cobrem-na bloqueando-te
a saída. Reparas pela primeira vez numa passagem do lado contrário da sala,
corres por entre as tenebrosas mulheres, alcanças a passagem e segues pelo
corredor que desemboca numa porta, tentas desesperadamente abri-la, mas a
fechadura não cede, o corredor contínua pela esquerda, e segues por aí, mas
poucos segundos depois estacas, a fraca iluminação permite-te perceber que mais
um estranho ser se encontra no final do corredor. Roupas rasgadas, cabelo em
desalinho, pele branca, unhas negras e compridas, olheiras profundas, olhar
perdido e louco. Assumes uma posição de defesa, braços esticados protegendo o
corpo, porém o ser faz o mesmo, estranho mimetismo… Deixas cair os braços, a
criatura volta a imitar-te, olhas com maior atenção, uma superfície separa-te
do teu opressor, uma superfície vítrea colocada exactamente entre um e o outro…
um espelho.
O corpo falha-te e as tuas pernas perdem a réstia de força que ainda alojavas,
os joelhos encontram o chão, mas a dor foge-te com a sanidade que julgavas ter.
Olhas o espelho e vês-te como os outros te vêm, vês-te como realmente és, como
és esta noite, nesta tua noite, nesta Noite de Bruxas.
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