segunda-feira, julho 31, 2006

do Monte da Lua

Queria escrever um texto que explicasse a razão de ser do nome deste blog. Porém, como tantas vezes acontece, as palavras fugiram da "dona", e cumpriram a sua própria vontade. Assim, do roçar da lapiseira no papel, salpicado por reminiscências da minha adolescência, nasceu "isto" passado algures nos anos 90, antes do suposto bug e do euro...

O comboio estacou, como habitualmente, com um solavanco. Perante o desequilíbrio de alguns o seu desdém evidente, conhecia todo o percurso com a familiaridade adquirida em anos. O cais terminal não chegou a encher-se com os viajantes, eram poucos os que chegavam àquela hora.
Ela seguiu rumo à vila, andando devagar, as mãos nos bolsos do casaco vermelho, que de tantas vezes lavado roçava já o cor-de-rosa. Do
walkman saía o som da nova rádio que mais uma vez lhe dizia This is me with another nervous breakdown…a letra tocava-a, mas a voz cansava-a terrivelmente, após ouvi-la vez após vez ao ritmo de uma música por hora em qualquer frequência sintonizável. Mudou para o modo de cassete, sorriu, era realmente um dos seus dias, o frio não chegava a incomodar, os turistas tinham regressado aos seus buracos, e enquanto a neblina rodeava a muralha, uma gota sorrateira beijou-lhe a testa e escorreu devagar acariciando-lhe a cara. Cobriu os cabelos ondulados com o capuz, e apressou o passo inconscientemente à medida que chuva se tornava mais forte, não por a sentir desagradável, mas por não querer perder nada deste momento perfeito. Let me show you the world in my eyes…
Estava concentrada no esforço mental necessário para conseguir coordenar o seu corpo de modo a que o pequeno eeyore, pendurado por um fio no fecho da sua mochila, batesse alternadamente numa perna e depois na outra, à medida que avançava, quando o viu… Estava sozinho, como sempre aliás, parado do outro lado da estrada, junto ao muro, com a chuva ensopando o cabelo comprido, a fumar um cigarro de aspecto duvidoso, miraculosamente aceso. Parecia completamente integrado no cenário, quase não sendo possível estranhar a sua presença estática ali, debaixo da chuva. O seu olhar era, como o resto da sua postura, inequívoco, como se não houvesse outro objecto digno de contemplação, o carro que passava entre ambos, os turistas resistentes de sotaque alegre e indecifrável, o relâmpago tímido que tornou o ambiente no cliché que ele com certeza desejaria.
Afinal a tarde não se mostrava assim tão perfeita, percorrer os caminhos ladeados de árvores da serra acompanhada por uma forte trovoada não lhe parecia uma ideia agradável. Desligou com esforço o magnetismo daquele olhar, mas afinal não passava de mais um
poser de ar arrogante, com intuitos de intimidar adolescentes saídas do liceu, admirava-a que não ostentasse nenhuma qualquer imagem sangrenta na t-shirt preta, mas adivinhava a forma de um pentagrama invertido sustentado por um fio junto à pele, mais um dos satânicos que escolhia a serra como local de culto, ignorando o facto desta estar coberta por um manto de magia branca. Ridículo…
Os seus pensamentos levaram-na dali e, quando de novo tomou consciência dos seus passos, já começara a
subir. A calma prendia o seu andar, tornando-o mais lento, experimentava sempre esta mesma sensação quando subia aquele caminho, sempre como se fosse a primeira vez. Já nem a afligia a ideia da voz aguda da avó E o chapéu de-chuva?! Ficou outra vez na escola?! E essas calças a arrastar pelo chão, cheias de lama! Nunca me deixas fazer uma bainha… Tu não me digas que vieste outra vez por aquele caminho! Quantas vezes já te disse para não vires por ali?! Não, nem isso, até chegar à velha casa da avó tinha todo um caminho mágico para percorrer, e esse…esse seria imaculado.
Apercebeu-se, então, que estava envolta em silêncio há já alguns minutos, o lado A da cassete tinha terminado. Hesitou antes de a voltar, o “silêncio” da serra estava apinhado de sons misteriosos e agradáveis que a faziam sorrir, mas nesse momento uma sensação estranha, desconhecida para si (pelo menos desconhecida no que dizia respeito àquele local) invadiu-a apanhando-a de tal modo de surpresa que sentiu os seus olhos arderem confusos, e as suas pernas voltarem-se geridas por uma vontade de correr de novo até ao centro da vila. *medo* Nunca tinha experimentado tal sentimento enquanto rodeada por aquelas árvores, passada a igreja todo o caminho era seu, entrava num mundo próprio e familiar, o grande carvalho que a protegia da chuva, a pedra lisa que apoiava a sua subida, a aranha que abanava a teia num aceno, o duende azulado de orelhas pontiagudas que a olhava da penumbra fora do caminho, e no momento seguinte era a memória duma presença sumida…
Agora o carvalho parecia barrar-lhe o caminho, atirando os ramos contra si arremessados por um vento que mal se fazia sentir, escorregou na pedra que tão bem conhecia, a teia oscilava mas não num aceno, antes numa luta vã de um pequeno ser alado que ansiava viver, e nem o ansioso duende azul exibiu a cara simpática e astuta, no seu lugar um movimento rápido e inumano de uma sombra esguia e alta que se desvaneceu entre a folhagem densa.
Não! Não! Não! Este sentimento não se iria instalar aqui! Não em si, não no seu lugar mágico! Nunca!
Virou a cassete. Os sons hoje não se mostravam tão agradáveis?! Pois trazia a sua própria banda sonora, não necessitava da voz dos pássaros serranos para se sentir feliz, a sua música era o suficiente, no seu mundo era Ela quem ditava as regras!
She’s dressed in black again And i’m falling down again, Down to the floor again, I'm begging for more again But oh what can you do When she's dressed in black…
Um sorriso de novo, mas não tão confiante, não tão verdadeiro e muito menos duradouro. Não se apercebera do momento em que o frio se tornara desagradável, com a chuva forte, apesar da copa das árvores quase formar um tecto perfeito, a ensopá-la deixando enregelar a sua paz, e trazendo à superfície sensações que até então lhe pareciam tão distantes.
Percorreu o caminho com dificuldade, pois o carreiro fora engolido por uma escorregadia corrente pastosa, os ténis de camurça enchiam-se de lama e os pés perdiam a sensibilidade à medida que o frio lhe penetrava na pele. Concentrada nos próprios passos para evitar escorregar, e tendo aumentado o volume do
walkman de modo a não escutar nenhum outro som, alheara-se completamente de tudo excepto o preciso lugar que pisava, quando uma presença inequivocamente real a surpreendeu. O rapaz de negro olhava-a um pouco à frente no caminho.
Uns olhos escuros e ternos fitavam-na sem curiosidade, quase transmitia confiança, não fosse o esgar trocista da sua boca. Percebeu que ele esperava algo, o susto prendera-lhe a mente numa espécie de esquema preguiçoso, precisando agora seguir alguns passos simples para o seu interior retomar o ritmo saudável. Respirou devagar, olhando em volta, estavam sós, nem mesmo a presença negra e esguia, que parecia acompanhá-la desde o velho carvalho, se mostrava. Tirou os
phones, e enfrentou-o com a sua indignação pois este era, sem dúvida, o Seu caminho!
O carro está na estrada principal. Anda, eu levo-te. O olhar obstinado que lhe entregou de seguida teria sido suficiente, mas o desdém no modo como seguiu caminho, afastando-o com firmeza, confirmou a sua intenção de continuar só, apesar da tentação evidente de um carro confortável, quente e seco…um escudo aparente contra os estranhos medos soltos naquela tarde irreal.
Não olhou para trás não quis comprovar o que sabia, que ele se afastava do caminho, deixando-a de novo entregue àquela perversa simetria do seu mundo.
O caminho pareceu-lhe estranhamente longo, e o céu tornara-se tão escuro, que quase podia jurar que já era noite, apesar disso não fazer qualquer sentido, tendo em conta as horas a que saíra da escola. Ao longe o velho casarão da avó, uma luz inconstante chamava-a da janela junto à roseira, dando-lhe força para percorrer os últimos metros, antecipando com prazer o momento em que molharia o soalho escuro com a chuva que trazia no seu corpo, largaria a mochila no
hall, pegadas cansadas a seguiriam até ao tapete felpudo junto à lareira, onde se sentaria perante a incrédula voz da avó, preocupada consigo e com o tapete, levantando-se da velha poltrona castanha, gasta pelo tempo, e seguindo directa para a cozinha para preparar chocolate quente e torradas, enquanto resmungava qualquer coisa como ela ser uma desmiolada e dever vestir umas roupas secas. E assim embalada pelo trepidar da madeira e pela voz aguda da avó, enroscar-se-ia no tapete branco e iria dançar com as fadas de asas vermelhas que rodopiavam junto ao fogo…
O céu já não lhe parecia tão escuro, aparentemente a chuva tinha parado de cair e apercebeu-se, então, que a música continuava ecoando junto aos seus ouvidos, o que indicava que não havia passado tanto tempo assim desde que iniciara a subida.
O portão estava aberto, não estranhou o carro preto estacionado junto à fonte, procurou rapidamente a chave, ansiando apenas pelo calor bafiento do casarão azul. Rodou a chave e a porta cedeu no mesmo momento, não estava trancada. Um bafo quente abraçou-a ao entrar, os olhos arderam-lhe com a sensação de pertença que ali sentiu, e que estranhamente lhe havia fugido durante todo o caminho. Deixou a água escorrer do seu corpo para aquele chão que pisara tantas e tantas vezes. Fechou a porta atrás de si e largou a mochila num canto, olhando-a com uma vaga apreensão, os livros estariam sem dúvida arruinados. Saboreou cada passo que a aproximava mais da sala quente, não se importando com as pegadas húmidas que deixava atrás de si. A sala exalava um calor agradável apesar do lume ser recente, fitou a lareira com uma ansiedade crescente de sentir o seu ardor no corpo. Descalçou os ténis ensopados, e passou os pés pelo tapete felpudo e morno pela proximidade das chamas. Sentou-se com as pernas debaixo de si, o olhar perdido no fogo procurando as fadas de asas vermelhas…a música parou e o click indicando o final da cassete trouxe-a de volta à sala.
Sabes que não podes voltar aqui, não sabes? A voz soou trémula mas meiga, o rapaz de negro fitava-a da poltrona de cabedal castanho, o esgar trocista dera lugar a um sorriso triste, e o olhar partilhava a mesma dor. A avó não volta, pequenina. Temos de aprender a viver com isso. Levantou-se devagar e passou-lhe a mão pelos cabelos molhados, não fez qualquer menção à roupa ensopada, mas preparou chocolate quente e torradas.
As fadas não ficaram muito tempo nesse fim de tarde, e ela também partiu cedo. Fechou a porta, trancando-a bem…Puxou o capuz vermelho para cima e entrou no carro preto.
^*^

1 comentário:

Bxana disse...

Dezenas de vezes que já fui à serra de Sintra, a tarde mais bonita que lá passei foi uma em que chovia como se não houvesse amanhã. Sai da estação de comboio, caminhei debaixo de chuva até à Regaleira, subi mais um pouco, fiquei ali, com a água a passar por debaixo dos meus pés, a nublina a adensar-se, e voltei um par de horas depois para a estação de comboio. Nunca mais me esqueci dessa tarde, que, teoricamente, não teve nada de especial. Mas que me fez sentir feliz.
Recordaste-me essa tarde.
Obrigada.

Está lindo. E é assim que deve de ser. ;)

Mts beijocas morceguinha ;)