sexta-feira, outubro 30, 2009

A Cor do Elefante

Estranhamente acordou com a perfeita noção do local onde estava, a noite tinha sido longa e povoada de sonhos agitados, espreguiçou-se ruidosamente, esticando a tromba enregelada pela humidade que escorria pelas paredes da gruta acanhada, o seu abrigo nocturno, o espaço que lhe havia permitido recuperar o sono perdido nos longos anos da infância. Saiu da gruta, a agradável brisa quente da manhã envolveu-o preguiçosamente como o abraço de um amante meio adormecido, o ar espesso contrastando com o frio desagradável que se escondia lá dentro. Sentiu o cheiro do pólen que sempre o fazia espirrar, o zumbido louco das abelhas provocou-lhe uma agradável irritação, semelhante ao arrepio de frio que segue o primeiro contacto com o lençol. Sorriu, sorriu aquilo que a sua boca teimosa e amarga lhe permitia ainda sorrir, um pequeno esgar que espelhava o quanto amava a vida que encontrara naquele pedaço de sonho.
Caminhou lentamente, como fazia todas as manhãs, a pressa de viver não é muita quando as cicatrizes ainda ardem, as pequenas alegrias que preenchiam o seu dia nunca eram certas, por mais dias que passassem para lhe provar o contrário. Assim, caminhava sempre devagar, enganando o medo de não as encontrar no caminho, adiando o prazer de as encontrar.
Ao fundo avistou as antenas de Gisela, aparecendo por detrás da grande acácia, pela qual havia desenvolvido uma peculiar atracção gastronómica, o elefante levantou a estreita tromba num cumprimento mudo, ao qual a amiga respondeu com um aceno de cabeça e um sorriso rasgado, pontuado por pequenas folhas verdes que lhe cobriam os poderosos dentes brancos. A pequena Dana seguiu o olhar da mãe, encontrando a imponente traseira do paquiderme, que continuara o seu passeio matinal, esta visão bastou para que a pequena girafa largasse o saboroso banquete, e corresse na direcção do ancião. Passou por baixo das pernas deste, parando na sua frente, e obrigando-o também a interromper a marcha.
_ Bom diaaaaa Ernesto!! – gritou entusiasticamente a pequena – Porque é que és cor-de-rosa? – a mesma pergunta todas as manhãs, seguida da mesma resposta, que sempre provocava um sorriso genuíno em Dana.
_ Bem miúda, na verdade, foi o amor...quando eu era pequeno, assim mais ou menos o dobro do teu tamanho – aqui Ernesto passava a tromba pelas antenas de Dana, olhando para ela do alto dos seus olhos cansados e trocistas, e ela ria enquanto fingia amuar por trás das suas faces enrubescidas – caí dentro daquele rio – apontou para o sulco na terra onde outrora cantara um riacho, e onde hoje em dia apenas se amontoava lama e um ou outro peixe com intentos suicídas – fiquei submerso dez dias e dez noites – aqui a mesma exclamação se soltava do espanto inocente da pequena criatura malhada - a minha tromba foi a minha salvação...Enquanto a esticava alcançando a superfície para não perder a vida, outros não temiam perdê-la, antes a tentavam doar, desafiando a corrente do rio no encalce da sua razão de existir. Tantos ao meu lado passaram, com o escarlate das suas escamas a fustigar-me a pele, que o seu amor foi ficando em mim como recordação daquilo que eram.

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